Cuckoo Land
"De fato, a utopia nunca é uma fantasia pura e isolada da realidade: é sempre uma reação à realidade, mais precisamente, é a crítica de um estado de coisas existentes em que a idéia utópica é uma solução fantástica."
(Corbel-Morana, C. 51, 2010)
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Cuckoo Land, o que é isso?
O título vem de Cloud Cuckoo Land (do grego Νεφελοκοκκυγία, Nephelokokkygia), que é um lugar descrito na comédia grega intitulada Os Pássaros de Aristófanes (414 aC). É sobre uma terra utópica pairando entre o céu e a terra, criada por um homem, através de sua ambição, retórica e a ajuda da ingenuidade e vaidade dos pássaros. Nosso primeiro contato com esta peça de teatro foi a partir da obra musical do compositor alemão Walter Braunfels (1882-1954), que escreveu uma ópera com o mesmo título em uma adaptação desta narrativa. O encanto com sua música nos impulsionou a pesquisar mais sobre suas composições, o que nos levou a descobrir seus dois ciclos de canções Fragmenten eines Federspiels e Neues Federspiel op .7 com textos do Des Knabewunderhorn, com canções também com o tema dos pássaros. Foi a cor harmônica e a riqueza dessas curtas e simples canções, junto com o fascínio pela trama narrativa de Aristófanes, que nos trouxe a faísca para a criação desse concerto.
O Concert Lab do HFMT Hamburg nos deu a oportunidade de experimentar em um contexto acadêmico a repensar os formatos de concertos tradicionais, o que nos levou à criação de um novo conceito de concerto de câmara: Um concerto de música de câmara em forma de narrativa, com filme de animação e multimídia . A ideia não era quebrar todas as regras deste formato de concerto tradicional, mas trazê-lo para uma nova estrutura de interpretação.
Com isso em mente, decidimos criar um “concerto narrativo” com uma adaptação livre da peça de Aristófanes, Os pássaros, cuja narrativa seria contada através de um filme de animação e o alinhamento da sequência de canções específicas escolhidas. Através do curta-metragem de animação, a ação da narrativa é contada, e as diferentes canções atuam, então, como uma "narrativa lírica", em diálogo poético ao filme. Desta forma, cada uma das canções tradicionais não só entram como em diálogo poético com a narrativa, mas também recebem um novo papel e uma nova perspectiva interpretativa.
Enredo de Cuckoo Land:
Guerras, leis, convenções: Dois homens, Roger (Pisthetaerus) e Axl (Euelpides), cansados da vida na cidade natal, decidem embarcar em uma longa jornada em busca de um lugar onde possam levar suas vidas de maneira diferente. Inspirados pela história mitológica de um homem que foi transformado em um pássaro, o Upupa, eles percebem que a vida entre os pássaros é a vida que eles estavam procurando há muito tempo. Isso leva à idéia da criação de uma terra utópica suspensa entre o mundo humano e o reino dos deuses, a Cuckoo Land.
Como defende o crítico literário grego R. Lauriola (2009), o termo utopia foi elaborado pela primeira vez por Thomas More (1478-1535), mas a base desse conceito e seu uso já foi explorada pelos antigos gregos. Na peça teatral de Aristófanes, podemos ver o conceito de utopia em suas três variações (utopia, eutopia e distopia) em uma descrição figurativa, juntamente com o enredo da narrativa. Estes três conceitos e sua relação com a peça nos levaram a tomá-los como pano de fundo teórico e filosófico para a criação do nosso filme de animação e como critério para a seleção das canções relacionadas.
A estrutura:
Do teatro tradicional de comédia grega, mantivemos as três estruturas principais: Prólogo, Parábase e Êxodo, que geralmente eram tocadas pelo coro grego. O fio narrativo é apresentado pelo filme de animação. O que descrevemos como uma “narrativa lírica”, através da sequência das canções escolhidas, representa o diálogo poético à trama do filme de animação.
As discussões levantadas por Aristófanes são atemporais e refletem problemas humanos onipresentes que sempre existiram e sempre existirão: a inquietação, o sonho, o desejo de mudança espiritual e espacial. A distopia utópica da segregação de todos os tipos, a ilusão de que a vida segura em uma bolha acaba sendo a solução para todos os problemas, entre outros. No entanto, a peça nos mostra como, através de nossas utopias, como indivíduos e como sociedade, desenvolvemos nossas vidas e conduzimos nossas escolhas a partir das lições que obtemos ao nos esforçarmos para alcançá-las.
Essas diferentes utopias estão representadas em nosso concerto em canções como L'invitation au voyage, Kennst du das Land e Auf Flügeln des Gesanges, entre outras. A transição da utopia para a eutopia pode ser encontrada em Il vole e Villanelle. Em ambas as partes, encontramos não apenas o desejo humano de pertencer a outro espaço espacial, mas também o desejo interior de alcançar outro estado espiritual, a saber, o do bem-estar individual. Os desejos eutópicos humanos são apresentados na canção Si mes vers avaient des ailes, e nas outras canções que descrevem a vida e a beleza das aves. O resultado destrutivo da utopia, a distopia, encontramos nas curtas canções de S. Barber, Sea Snatch e Praises of God.
Filme de animação versus canção:
Como mostra o cientista Dan Sofaer (2011), Aristófanes reforça em sua peça a distância utópica entre humanos e aves através de uma espécie de confronto entre linguagem e música:
Ao longo da peça, canção e fala são colocadas em confronto, com Pisthetairos (Roger) representando o poder da linguagem, a retórica, e o coro das aves representando o poder da canção. (...) O equilíbrio certo entre música e linguagem não é apenas parte da comédia em geral; também pode ser considerada um objetivo utópico que essa comédia evoca, levando pessoas e pássaros ao mesmo palco, tentando sua reconciliação por meio de uma justaposição dinâmica entre música e fala. (D. SOFAER, p. 16, 2011)
Ao lidar com textos de Sofaer e outros estudiosos literários, foi o que contribuiu para a conceitualização teórica que do desenvolvimento desse projeto.
Quem somos nós, intérpretes, neste concerto?
Somos o retrato de pessoas de todas as idades e eras, com suas aspirações lúdicas, para alcançar novas vidas e novos mundos. Como inspiração, seja para o desenvolvimento científico ou para dar luz aos nossos profundos sonhos interiores, os pássaros com seus mistérios e liberdades, são os que sempre nos fascinaram e nos inspiraram como seres humanos a ver a vida por diferentes perspectivas.
Nívea Freitas